o pequeno deus-rei-preto

jojo lena
3 min readJul 23, 2020

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estava aqui, onde sempre estive, quando um pequeno menino preto chamou. “Vem cá”, me disse. aproximei-me. “Mais perto”, disse ele. abaixei-me então à preta realeza daquele pequeno menino preto. que de rei tinha o porte, a fala de rei e seus trapos de rei. mas havia mais: os olhos daquele pequeno menino deslocaram-me para um não-lugar. ele era deus. os olhos daquele menino eram deus. a sua pequena realeza que governava o seu pequeno corpo eram deus. exposto aos olhos de deus e posto em um não-lugar, eu não era. não ousava ser. o pequeno rei-deus tocou-me a cabeça. tocou-a como toca uma fruta, a fim de experimentar no tato, quão madura a fruta se apresenta. “Está oca”, disse o menino-deus-rei. “Está oca como um coco que se nutriu de seu próprio líquido. Está oca como uma concha oca que perdeu sua pérola. Está oca como a cabeça oca de um ser humano que é pouco”. oca. a palavra ecoou na cabeça que antes estava oca, e preencheu-se da palavra, e a palavra tomou uma forma no meu rosto. meu rosto oco. o pequeno menino-deus-rei-preto observou-me com candura, percebendo o rosto que antes oco, preenchia-se da palavra. “Por que me chamou?”, perguntei-lhe ao mesmo tempo em que procurava na sua candura a resposta. disse-me nada. “Pouco”, escapou-me dos lábios. o pequeno menino-deus-rei estendeu seu pequeno braço e calou-me com a realeza do seu pequeno dedo de deus. senti então que algo me preenchia os lábios, e depois a boca, e depois a garganta, e corria e corria dentro de mim. jorrava do pequeno dedo de deus um quase fluido flutuante que invadia as paredes ocas do meu ser pouco. “Cala”. já não falava. não através da sua pequena boca de rei. mas eu podia escutar a sua voz de deus ressoando no meu corpo oco, como o fluido flutuante que pulsava dentro de mim. cerrou-me então os olhos, sem dizer palavra ou tocar-me. não precisava. podia sentir a sua pequena real presença e os seus olhos de deus preto atravessar-me. tratou de acompanhar com os olhos o caminho que o fluido flutuante percorria dentro do meu corpo antes oco. sentia o fluido enchendo e esvaziando, parte a parte do meu corpo, pouco a pouco, e lentamente já não me sentia pouco, ou oco. num relance, os pequenos olhos de rei do pequeno menino deus preto miraram a minha cabeça. uma estonteante vertigem tomou conta de mim. pude sentir o fluido flutuante direcionando-se rapidamente até a minha cabeça, e como um vulcão, jorrar pelo topo da minha cabeça. transformou-se em um feixe de luz violeta, e ascendeu rapidamente ao céu. ainda de olhos cerrados, vi formar-se no pequeno rosto preto do menino rei um largo sorriso, um sorriso de deus. e rindo mandou-me abrir os olhos, que não pareciam estar fechados em nenhum momento. raios de sol apressaram-se em cegar-me momentaneamente, e à medida que recuperava a visão física, observava o pequeno corpo preto de deus. caí de joelhos, e cabeça ao chão, chorei. chorei perante a pequena grandeza de um menino preto. chorei diante de deus. tocou-me levemente a cabeça, levantou-me pelos ombros, e ainda de joelhos, abracei-o. os pequenos bracinhos de deus envolveram-me de morna candura. pousando sua mão de deus atrás da minha cabeça, disse-me ao ouvido: “Está madura”. a pequena boca do menino deus rei preto começou então a balbuciar meia dúzia de palavras. as palavras foram ganhando uma melodia muito única, transformando-se em uma cantiga de ninar. leve e rapidamente, fui perdendo os sentidos. pude ouvir a sua risada de criança antes de dormir profundamente. deus embalou-me para dormir. e dormi. durante sete dias e sete noites. quando acordei, ainda podia ouvir a sua risada: um riso de menino deus rei preto.

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jojo lena

ergo castelos de palavras para salvaguardar o mistério • ig: @quimeraobtusa